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Publicado em 22/01/2021
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Artigo: Cidadania fiscal versus ilusão fiscal

Por Caio Malphigi*
Publicado originalmente em Valor Econômico em 21 de janeiro de 2020

 

Quando escreveu “O Príncipe” (“Il Principe”) em 1513, Maquiavel deixou um verdadeiro manual, contendo mandamentos, máximas e orientações, para a instituição e condução de um governo absolutista, que viesse a unificar a Itália (na época dividida).

Em uma das passagens de seu livro, justificando os meios pelos fins, Maquiavel defende que o povo deve ser ludibriado, como forma de manutenção do poder pelo príncipe soberano. Assim, ele explica para o príncipe: “todos vêm o que tu aparentas, poucos sentem aquilo que tu és; e esses poucos não se atrevem a contrariar a opinião dos muitos”.

Os cidadãos devem ter plena consciência de quanto estão pagando, para saber o quanto podem exigir de retorno

Apesar do modelo de Estado absolutista pregado por Maquiavel não encontrar mais espaço no atual estágio civilizatório, marcado pela hegemonia dos governos democráticos, ainda assim políticos e administradores eleitos pelo voto popular tentam ludibriar os cidadãos eleitores (de quem deveria emanar o poder), com este espírito maquiavélico, por meio do que chamamos de ilusão financeira.

Esse fenômeno é narrado pelo economista Italiano Amilcare Puviani em seu livro “Teoria da Ilusão Financeira” (“Teoria della illusione finanziaria”), no qual ele demonstra que a complexidade e a falta de transparência dos sistemas tributários e de finanças públicas podem ser utilizados propositalmente pelos governantes e administradores públicos para sublimar a má gestão das receitas decorrentes da arrecadação tributária, bem como para diminuir a resistência e questionamentos dos contribuintes quanto à necessidade ou legitimidade dessas arrecadações compulsórias.

É o que acontece no Brasil, principalmente na tributação sobre o consumo, que é fragmentada em diversas competências legiferantes (federal, estaduais e municipais), com várias formas de incidências tributárias (PIS, Cofins, IPI, ICMS e ISSQN), em um sistema altamente complexo e custoso.

Pior, diante da cumulatividade dessas incidências tributárias, em todas as cadeias de produção (desde a importação/industrialização até o consumo final) e da mencionada complexidade de apuração de cada um dos vários tributos, o consumidor final (que é o contribuinte que, de fato, arca com o ônus financeiro desses impostos) não tem consciência de quanto do valor pago pelo bem ou serviço adquirido foi destinado ao Estado, a título de tributação.

O que queremos dizer é que, quando uma pessoa vai ao mercado e compra um saco de feijão, por exemplo, por R$ 8,00, ela sequer tem noção de quanto do valor foi repassado ao Fisco. Muitas vezes, a população nem se dá conta de que, ao consumir determinado bem ou serviço, está, naquele momento, contribuindo para o financiamento da atividade estatal. Uma verdadeira ilusão fiscal.

De fato, a tributação indireta (sobre a renda consumida) é mais difícil de ser percebida pela população, ao contrário da tributação que incide diretamente sobre a renda, situação em que o contribuinte “sente na pele” ao declarar e pagar um imposto calculado sobre o fruto de seu capital ou de trabalho. Isso, aliás, já foi notado há muito tempo (em 1848) pelo pensador inglês John Stuart Mill, em seu livro “Princípios da Economia Política” (“Principles of Political Economy”).

Agora, se pela sua própria forma de incidência, a tributação sobre o consumo passa mais facilmente desapercebida pelos cidadãos, esse ilusionismo fiscal é potencializado quando o Estado se organiza de forma complexa, estabelecendo diversas regras e alíquotas, fragmentando assim a base de incidência fiscal sobre consumo entre diversos entes políticos, com uma variação de carga fiscal (que varia não apenas entre setores econômicos, mas também de produto para produto).

Desse modo, quando indústria, comércio e prestadores de serviços se submetem a regimes tributários distintos, além da distorção econômica causada ao mercado, o consumidor final arca com o tributo no escuro, ao consumir determinado bem ou serviço.

Pior, quando o arroz tem uma carga de incidência fiscal diferente da carga de incidência fiscal do feijão que, por sua vez, é tributado diferentemente do que é a farinha, tudo isso com cálculos complexos que são apurados “por dentro” do valor dos bens comercializados (com um tributo incidindo sobre outro tributo), o contribuinte fica impossibilitado de saber quanto está pagando de imposto.

Isso nos encaminha ao debate da reforma tributária, cujo desafio principal não é apenas apresentar um modelo de tributação sobre o consumo que se mostre o mais eficiente e neutro possível, mas que também se mostre claro e perceptível à população, de modo que os cidadãos tenham plena consciência de quanto estão pagando, para saber o quanto podem exigir de retorno da atividade estatal.

Nesse ponto, dentre todas propostas, aquela apresentada pela Câmara dos Deputados por meio da PEC nº 45/2019 é a que parece melhor atender a esses anseios, pois unifica todas as bases de incidência sobre o consumo (importação, industrialização, comercio e prestação de serviço) em um único Imposto sobre Bens e Serviços (IBS), que conta com: (i) uma alíquota única e uniforme; (ii) crédito amplo em cada uma das cadeias produtivas (evitando a cumulatividade, de modo a permitir com que o consumidor final arque apenas com a carga tributária incidente na última cadeia de consumo); e (iii) utilização do método do cálculo por fora, que possibilita ao consumidor final saber exatamente qual foi a carga tributária arcada quando da aquisição daquele bem ou serviço.

Enfim, uma reforma tributária é necessária, para que tenhamos mais cidadania e menos ilusionismo fiscal e financeiro. Afinal, todo o poder emana do povo (artigo. 1º, caput, CF/88), que merece clareza e transparência do Estado Fiscal.

 

*Caio Malpighi é advogado tributarista no escritório Ayres Ribeiro Advogados e conselheiro jurídico (legal advisor) na Associação Brasileira das Empresas de Luxo (Abrael).

 

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