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Publicado em 00/00/0000
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Cultura, burocracia e simplificação - Adson Thiago

Há expressões que se constituem polissêmicas, ou seja, possuem múltiplos sentidos a partir da tradição que as abordam ou contexto no qual são aplicadas. Parece-nos ser esse o caso da palavra “cultura”, que mantém constantes retomadas do seu significado, o que contribui para formação de uma cadeia de léxicos históricos que modelam a sua construção.

Malgrado esse fenômeno no campo da semântica, assumindo os riscos que isso comporta, definimos cultura como tudo aquilo produzido pelos homens para além do que nos é ofertado, originalmente, pela natureza. Em outros termos, cultura é uma fabricação antropológica, é a configuração do mundo plasmado pelos homens, manifestando-se nas instituições, nas artes, na religião, na ciência, no direito, na política, enfim, em tudo aquilo que grava em si códigos da condição humana.

À luz dessas questões, algo nos tem chamado a atenção na formação cultural brasileira: a capacidade que nós, brasileiros, ao longo de nossa trajetória histórica, tivemos de construir uma realidade que tem nos orientado, via de regra, pelo labirinto da complexidade. Estamos falando, de maneira particular, de nossa cultura burocrática, sempre propensa a conduzir-nos, entre dois caminhos possíveis para se alcançar determinado objetivo, pelo mais intricado, isto é, o mais complicado.

A burocracia e suas disfunções tornaram-se, no Brasil, sinônimo de uma dificuldade para cada solução. Ademais, invocando Javier Pascual Salcedo, caracteriza-se como a arte de tornar o possível impossível. Hélio Beltrão, um dos pais de uma das últimas tentativas de desburocratização, e olha que isso foi no final da década de 1970, mencionava que quanto mais burocracia, menos democracia. O senador Cristovam Buarque, por sua vez, diz se tratar de uma fábrica de indiferença diante da realidade, sendo diagnosticada como uma enfermidade incurável.

Os efeitos da burocracia proliferam-se, como um vírus, por todos os segmentos de nossa vida social. Vejamos, por exemplo, suas implicações em nossa tradição jurídica, onde optamos por construir um arcabouço normativo alicerçado na complexidade, no excesso de regulação, pretendendo-se, quiçá, uma previsibilidade, que nem por isso afasta a insegurança ante os dilemas que são postos tanto aos cidadãos quanto ao Estado. Não por outro motivo, no momento em que se está diante de um caso concreto, que reclama a solução do direito, resta-nos o extenuante exercício de escolha, diante do amontoado caótico de regras, a que “melhor” deva ser aplicada.

Observamos, além disso, que até a própria política, espaço que deveria estar a serviço do diálogo, reflexão e superação das contradições que se manifestam em nossa sociedade, já se capitulou ao receituário da burocracia. Basta que assistamos a uma sessão legislativa, em qualquer das casas de lei desse país, para constatarmos que as discussões em torno das intermináveis querelas regimentais assumem o protagonismo na cena política, eclipsando, desta forma, o enfrentamento das verdadeiras matérias que deveriam ser objeto do esforço de sua apreciação. Uma verdadeira inversão, onde os meios sobrepujam os fins, algo típico da cultura burocrática.

Completando nossa reflexão, precisamos reaprender ou aprender, pois não sei ao certo se um dia já soubemos, o que é simplificar. E, tomando de empréstimo um pensamento do filósofo Arnold Toynbee, a sobrevivência diante dos desafios do nosso tempo requer a necessária capacidade de romper com culturas e hábitos profundamente arraigados. Felizmente, acrescenta o mesmo pensador, cultura e hábitos não são instintos gravados pela natureza, e que a sociedade, colocada diante da inevitável escolha, poderá preferir, ainda que lhe seja dolorosa, a mudança, ou contentar-se-á em colher o malogro de suas aspirações.

Portanto, se queremos construir um presente e, mais ainda, um futuro que nos seja mais esperançoso, ou desburocratizamos, simplificamos nosso projeto de país, ou, então, assumamos ser nós mesmos os arquitetos de nossa própria ruína.


Adson Thiago Oliveira Silva.
É economista e auditor fiscal da Sefaz/ES