Blog Opinião Fiscal

Publicado em 00/00/0000
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A benfazeja autonomia das Administrações Tributárias - Charles Alcântara

A narrativa da grande imprensa sobre a corrupção e a sonegação atua como reforço ideológico à falsa dicotomia que projeta, de um lado, o agente público e o político corrupto e, de outro, não o sonegador, mas o empresário, gerador de empregos e produtor da riqueza, que sonega para sobreviver aos abusos do poder público.

Disso resulta uma espécie de redenção à figura do sonegador, cuja projeção social está muito mais próxima à de uma vítima do Estado do que à de um fora da lei.

Não importa o quão espantoso seja o rombo causado pela sonegação e o dano social dela decorrente, porque a sonegação está fadada ao rodapé das páginas dos grandes jornais e a registros telegráficos nos telejornais.

Não importa que a sonegação tributária brasileira em 2014 tenha superado a casa dos R$ 500 bilhões, de acordo com estudos técnicos feitos pelo Sindicato dos Procuradores da Fazenda Nacional (Sinprofaz), enquanto outros estudos estimam entre R$ 70 e R$ 85 bilhões o tamanho do rombo provocado pela corrupção.

Da relação quase siamesa entre corrupção e sonegação, brota uma diferença sutil: enquanto a corrupção consiste no desvio de parte da receita pública para favorecer corruptos e corruptores, a sonegação consiste num desvio ainda maior, na medida em que o dinheiro sonegado sequer chega aos cofres públicos, porque apropriado indevidamente pelo sonegador.

Aqui me refiro mais propriamente à sonegação dos chamados impostos indiretos embutidos no preço dos bens e serviços pagos pelo consumidor.

No mais, esses dois crimes sociais igualam-se em iniquidade, porque ambos sangram os cofres públicos e reduzem drasticamente a possibilidade de nos constituirmos como um país socialmente justo.

Embora os crimes de sonegação e corrupção devessem ser combatidos com a mesma energia e prioridade pelo Estado, vê-se que, no Brasil, investigar, autuar e prender sonegador não dá o mesmo “ibope” que investigar, autuar e prender corrupto.

Nascida do ventre das manifestações populares de junho de 2013, a Lei Federal nº 12.846/2013 (Lei Anticorrupção), que dispõe sobre a responsabilização administrativa e civil de pessoas jurídicas corruptoras, surge como poderoso instrumento de repressão legal à corrupção, porque passa a mirar a figura do corruptor.

Pelo menos há um consenso virtuoso na sociedade brasileira: é preciso acabar com a corrupção! Decorre desse consenso outro de igual virtuosidade: se coragem e espírito público são requisitos comportamentais indispensáveis para combater a corrupção, a autonomia institucional e funcional são requisitos legais também indispensáveis.

Não há combate efetivo à corrupção sem a coexistência e complementariedade dos requisitos comportamentais (coragem e espírito público) e legais (autonomia institucional e funcional). Isso sem falar nos requisitos de natureza material, ligados a pessoal, tecnologia e infraestrutura.

Se a crônica impunidade aos corruptos e corruptores ao menos vem sendo enfrentada com uma série de iniciativas político-jurídicas, a começar pelo fortalecimento das instituições encarregadas de fazer cumprir as leis, não se pode dizer o mesmo em relação à sonegação.

Se ao menos existe um caminho traçado para controlar os níveis de corrupção, a sua parente colateral – a sonegação – segue sendo desprezada na estratégia de ação estatal. Pugno por um Pacote Antissonegação, com pelo menos quatro medidas prioritárias:

1. Revogação do odioso privilégio da extinção da punibilidade ao sonegador mediante o pagamento do tributo sonegado (esse privilégio, contido na Lei Federal nº 9.430/1996, serve de estímulo à sonegação, na medida em que atribui como pena máxima ao sonegador, pelo crime cometido contra a sociedade, o pagamento do tributo sonegado).

 2. Aprovação da Proposta de Emenda Constitucional nº 186/2007, que acrescenta os §§ 13 e 14 ao artigo 37 da Constituição Federal, que preveem a edição da Lei Orgânica Nacional das Administrações Tributárias da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios e conferem a estas autonomia administrativa, financeira e funcional.

3. Regulamentação do artigo 52 da Constituição Federal, que inclui, entre as competências privativas do Senado Federal, a de avaliar o desempenho das Administrações Tributárias da União, dos estados, do Distrito Federal e dos municípios.

4. Fim do financiamento empresarial de campanhas eleitorais (sim, porque se engana quem supõe que esse modelo de financiamento é causa apenas da corrupção. O sonegador também é bastante favorecido por esse modelo de financiamento eleitoral que institucionaliza a promiscuidade na relação entre o público e o privado).

A Carta Magna não deixou margem para controvérsia ao estabelecer que as Administrações Tributárias da União, dos estados, do Distrito Federal e dos municípios são essenciais ao funcionamento do Estado, que serão exercidas por servidores de carreiras específicas e terão recursos prioritários para a realização de suas atividades.

 Ao conferir à Administração Tributária o atributo da essencialidade ao Estado, a Constituição nada mais fez do que declarar que este – o Estado – não sobrevive sem aquela – a Administração Tributária.

Os servidores das carreiras específicas das Administrações Tributárias (autoridades tributárias) não atuam em nome de governos, mas da sociedade, e, por desenvolverem atividade medular em se tratando de conflito entre o interesse público e o privado, carecem de prerrogativas que lhes assegurem proteção contra eventuais demandas, pressões e conveniências dos agentes políticos, não raro permeadas por interesses corporativos defesos ao interesse da coletividade.

A mesma imparcialidade e autonomia que se requer de um promotor ou de um juiz no exercício de suas funções exige-se de uma autoridade tributária, razão pela qual não se justificam as condições institucionais, funcionais e materiais dicotômicas entre essas carreiras.

É possível acreditar que o Ministério Público, titular da ação penal, possa exercer um combate efetivo à corrupção destituído da autonomia consagrada na Constituição? Quem se arrisca a dizer que sim?

A PEC 186/2007 cuida exatamente de suprir essa fragilidade institucional das Administrações Tributárias, que, embora titulares do lançamento do crédito tributário e encarregadas da fiscalização do cumprimento da legislação tributária, ainda padecem da falta de autonomia para combater o crime de sonegação.

Destituída de autonomia administrativa, financeira e funcional, as Administrações Tributárias ficam à mercê das pressões e dos interesses de grupos econômicos e da troca de “favores” entre financiadores de campanhas eleitorais e eleitos, decorrente desse modelo de financiamento.

Abro aqui um parêntese para defender que a autonomia da Administração Tributária faça-se acompanhar do necessário controle social (externo), de modo a prevenir os riscos decorrentes de uma eventual hipertrofia corporativa e, ao mesmo tempo, assegurar a soberania popular no controle do Estado.

 Autonomia acompanhada e controlada por um conselho integrado por representantes dos Poderes Legislativo e Judiciário, do Ministério Público e de entidades da sociedade civil, inclusive das próprias autoridades tributárias.

Aceitar a ingerência política no Fisco equivale a aceitar a injustiça tributária, o arbítrio, o clientelismo, o patrimonialismo, a corrupção e a sonegação.

Pugnar pela autonomia e prestigiar a índole estatal dessa instituição, essencial à sociedade, é colocar-se a favor da plena cidadania, da justiça social e da possibilidade de redução da carga tributária pela via da eficiência na fiscalização e arrecadação.

A agenda da autonomia das Administrações Tributárias (com controle social) é contemporânea e profundamente democrática, porque construtora de um Estado social de direitos no sentido da transparência, da repressão ao crime de sonegação e seus reflexos no equilíbrio das contas públicas, do aumento da capacidade de investimento público e, por consequência, da promoção de um país mais justo e solidário.

 

Charles Alcântara
É Auditor de Receitas do Estado do Pará e Diretor para Assuntos Técnicos e Comunicação da Fenafisco