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Publicado em 03/02/2020
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Artigo: Tributo à Sociedade

Por Bruno Aguilar Soares *
Publicado originalmente no Nada Óbvio em 03 de fevereiro de 2020
Foto: Dorivan Madrinho/SCO/STF

Em recente julgado o STF firmou o entendimento segundo o qual o contribuinte que, de forma contumaz e com dolo de apropriação, deixa de recolher o ICMS cobrado do adquirente da mercadoria ou serviço, incide em crime contra a ordem tributária. Após inúmeras discussões em nossos tribunais, tal posicionamento sinaliza um novo paradigma para relação fisco-contribuinte em nosso país.

Com efeito, em virtude da referida decisão, também se irradiou pela imprensa especializada uma narrativa de tom alarmista de que a partir de agora o mero inadimplemento do ICMS acarretaria numa criminalização indiscriminada de contribuintes pelo fisco, o que traria como consequências sérios prejuízos à segurança jurídica e forte instabilidade no ambiente empresarial.

Entretanto, é imperativo rechaçar tal perspectiva de excessivo rigor penalista que de forma alguma se coaduna com a realidade fática, como bem esclareceu o ministro Luiz Carlos Barroso: "Não se trata da criminalização da inadimplência, e sim da apropriação indébita. Não é quem deixou de pagar o ICMS eventualmente num momento de dificuldade, ou pulou um mês, dois meses, até três meses. É o devedor contumaz, o que não paga quase como uma estratégia empresarial, que lhe dá uma vantagem competitiva que permite que ele venda mais barato do que os outros, induzindo os outros à mesma estratégia criminosa".

Nesse sentido, mostra-se equivocada a argumentação de que todo contribuinte inadimplente será processado criminalmente, pois o que se busca coibir é o comportamento lesivo que o devedor contumaz praticou, dolosamente, com o intuito de apropriar-se de recursos que não lhe pertenciam, advindos de fatos geradores de tributos. Haja vista que, a continuidade da tolerância criminal a esta conduta infratora, além de prejudicar a estrutura concorrencial, também afeta de sobremaneira a parcela da sociedade mais dependente de ações estatais, em razão da subtração delitiva de recursos que deveriam ser destinados à coletividade.

Logo, tal posicionamento é oportuno por resgatar o conceito compulsório do tributo, que guarda etimologicamente desde os tempos mais longínquos uma natureza obrigacional de enorme sentido executório e social. De modo que, o dever de pagar tributo ao longo do desenvolvimento da humanidade esteve atrelado as mais diversas experiências impositivas do Homem, seja em sua relação de prestar culto ao divino, a sujeição dos vencidos aos custos da guerra, a sustentação de impérios, bem como a concepção moderna de contraprestação de serviços públicos pelo Estado.

Assim, é preciso ter mente que a decisão do STF se assenta no fortalecimento simbólico e coercitivo do enfoque comportamental do cumprimento tributário como norma social. Com efeito, o objeto da persecução penal se direcionará aqueles contribuintes que de forma comprovada, por meio do devido processo legal, deliberadamente se apropriaram do ICMS de maneira reiterada, dando destinação diversa ao imposto, praticando uma concorrência predatória, e prejudicando a conduta geral de cumprimento da norma. Trata-se de uma questão tão intrincada que para seu adequado enfrentamento deve-se transcender aos aspectos meramente jurídicos, pois também se entrelaçam no ecossistema tributário condicionantes de cunho sociológico, contábil, e até mesmo psicológico, como na demonstração do dolo delitivo.

Acresce mencionar que a ratificação jurisprudencial de uma norma social de respeito ao tributo tende a propagar implicações de extremo valor para o aprimoramento civilizatório de nossa nação. Reverberando uma influência comportamental de destaque aquele contribuinte que primou pelo zelo tributário, um referencial a ser exaltado. Assim, ao fomentarmos uma cultura de conformidade contábil e fiscal pelos contribuintes, por conseguinte, promove-se um ambiente empresarial mais ético e sustentável, em ruptura ao pernicioso paradigma do descumprimento voluntário no recolhimento de impostos, que além de afetar a obediência coletiva da norma também desestabiliza a percepção da cidadania.

Ressaltes-se que a segurança jurídica é ainda mais robustecida quando se enaltece o exercício da conduta prescrita pela lei, pois se um determinado comportamento proporciona uma aceitação publica, a influência social tende a incentivar o cumprimento desta norma pelos indivíduos afetados, como apontam os estudos em psicologia social. De modo que, quando se promove a valorização do bom contribuinte, por consequência, está se fomentando um contexto amplo de conformidade fiscal, ao passo que para aquele contribuinte que volitivamente praticou um comportamento infringente, além da reprovação social de sua conduta, também é razoável que esteja sujeito a penalidades proporcionais a extensão dos danos causados a sociedade.

Ademais, é necessário destacar que o devedor contumaz que dolosamente se utiliza da estratégia de apropriação dos tributos devidos, além de atuar para o desequilíbrio dos preços de mercado, em virtude da supressão ilegal de custos, também tem como prática a ocultação de bens ou o desvio dos recursos oriundos de impostos, a fim de inviabilizar a recuperação desses ativos por meio da cobrança administrativa ou judicial, que, muitas vezes, mostra-se ineficaz em decorrência de sua morosidade protelatória, e, uma vez finalizada, não raro se constate a ocorrência da dilapidação patrimonial da empresa, de forma a corroer paulatinamente a confiança jurídica na efetividade do procedimento de execução fiscal brasileiro.

Como há séculos vaticinou o filosofo grego Aristóteles, “a lei nos manda praticar todas as virtudes e nos proíbe de praticar qualquer vício, e o que tende a produzir a virtude como um todo são aqueles atos prescritos pela lei visando à educação para o bem comum”. Logo, não há como assegurar a eficácia de um Estado Democrático de Direito onde se conviva passivamente com o desapego aos preceitos legais de sustentação do bem comum, especificamente, por meio de práticas empresariais delituosas de subtração intencional de tributos, que deveriam ser revertidos ao Erário para benefício de toda sociedade; e produzindo como consequências aviltantes: a deterioração dos serviços públicos, a manutenção vexatória da desigualdade, e o temerário esgarçamento do tecido social.

Todavia, cumpre observar que não será simplesmente com mais direito penal, ou com a vigilância onipresente da tecnologia, nem mesmo através da ampla litigiosidade administrativo-judicial que alcançaremos o amadurecimento da relação fisco-contribuinte. Pois, de forma alguma se almeja erigir um Estado policialesco na cobrança tributária, mas sim, reforçar as ferramentas de cooperação fiscal, e solução harmônica de conflitos tributários; construindo desta maneira uma Administração Fazendária que seja multiportas em suas alternativas de conciliação, e que atue de forma razoável e progressiva na aplicação dos instrumentos coercitivos de recuperação de tributos.

Portanto, tornou-se inadiável reestabelecer o valor social do devido recolhimento dos impostos, como meio de prestar tributo à sociedade, assim como o respeito e destaque à reputação empresarial daquele contribuinte que em meio a toda complexidade tributária buscou cumprir com seu dever legal. Em contrapartida, ao contribuinte que eventualmente inadimpliu, e não pode honrar com sua obrigação de pagar o imposto, em razão de circunstâncias imprevistas ou decorrentes de oscilações econômicas, é indispensável que se viabilizem mecanismos legais e institucionais que promovam soluções alternativas de controvérsias tributarias, como já ocorre nos comitês interinstitucionais de recuperação de ativos (CIRAs), a massificação dos sistemas interativos de autorregularização, a orientação direcionada para parcelamentos, e a simplificação dos procedimentos de transação tributária.

Por outro lado, também é fundamental que haja uma maior participação popular para construção de uma ampla conscientização coletiva dos malefícios oriundos da sonegação, que embora seja tão nociva quanto a corrupção para vitalidade das receitas públicas, seu enfrentamento não alcança um expressivo engajamento da sociedade. A cidadania fiscal exige um comprometimento diuturno no controle social de todo ciclo tributário. Um acompanhamento proativo que deve ser exercido pelo cidadão desde a arrecadação até sua devida aplicação nas demandas da população. Por isso, é primordial que a sociedade assuma seu papel de destaque no debate tributário, como forma de assegurar o propósito de justiça fiscal no fortalecimento do laço social.

Neste aspecto, Raymundo Faoro, em sua obra clássica, “Os donos do poder”, já denunciava as consequências nefastas que este distanciamento entre sociedade e administração estatal ocasionou para a viabilidade emancipatória em nosso processo de desenvolvimento como nação. Um modelo que além de anacrônico e excludente, ao não fomentar o pertencimento, cerceia a população de seu protagonismo na condução dos caminhos do país, resultando na perene postergação de seu próspero futuro. Nas palavras do renomado autor, ao longo de sua história, no Brasil:

Em virtude desse fenômeno – que estrutura a tese central desse estudo – o Estado projeta-se, independente e autônomo, sobre as classes sociais e sobre a própria nação. Estado e nação, governo e povo são realidades diversas, que se desconhecem, e, não raro, se antagonizam.

Sendo assim, somente com a efetiva participação da sociedade na fiscalização dos tributos e acompanhamento da qualidade do gasto público, poderemos de fato constituir um governo que seja reflexo do povo, que proporcione a percepção coletiva de pertencimento, de modo a romper definitivamente com esse trágico passado de ilusória soberania popular e malversação dos recursos auferidos pelo Estado. É hora de buscarmos uma nova história para a questão tributária em nosso país, já que ao permanecermos inertes nos tornarmos reféns de nossa própria realidade, e cúmplices silenciosos das mazelas sociais que nos atravessam diariamente. Neste contexto, a manifestação do STF é paradigmática, pois ratifica o sentido simbólico da sacralidade do dever legal de recolher o tributo, como meio de proporcionar a sustentabilidade da cidadania, da lealdade concorrencial, e do cumprimento normativo.

Bruno Aguilar Soares* é auditor fiscal da Receita do Estado do Espírito e ocupa atualmente o cargo de gerente de Fiscalização da Sefaz-ES (Secretaria de Estado da Fazenda).