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Publicado em 04/05/2021
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Artigo: A tributação sobre riqueza em tempos de coronavírus

Por Mauro Silva*
Publicado originalmente em Estadão, em 04 de Maio de 2020
Foto: Divulgação

Relevantes empresários, a imprensa e políticos brasileiros de centro festejaram a eleição de Joe Biden à presidência da República dos Estados Unidos como um sopro de alívio sobre o populismo tóxico de Donald Trump que não apenas contaminava a sociedade norte-americana, como contagiava outros lugares do mundo. As lideranças políticas e empresariais hegemônicas do Brasil, que gostam de se comparar aos vizinhos do Norte e enaltecer seus valores liberais, passaram a vê-lo como exemplo a ser reproduzido por aqui. No campo tributário, não é de todo mau tê-lo como referência. Biden teve a coragem de tocar abertamente num assunto envolto em mitos e que é tabu entre a turma do andar de cima: a taxação das grandes riquezas.

Mas o tema acerca da tributação sobre riquezas não é central apenas nos Estados Unidos. Vem sendo tratado em âmbito mundial como alternativa sensata e eficiente para fazer frente aos efeitos catastróficos acarretados pela pandemia da Covid-19, que afetou não apenas a saúde, mas a economia dos países, aprofundando o fosso das desigualdades sociais.
Alguns modelos já foram aplicados ou estão sendo considerados em outros países, os quais podem ser ajustados para a realidade do Brasil. No Reino Unido, por exemplo, um extenso estudo publicado recentemente pela Wealth Tax Commission trata da possibilidade de instituição desse imposto, cujo debate estava no limbo, por quase cinquenta anos, coincidentemente com o triunfo do neoliberalismo da ex-primeira-ministra Margaret Thatcher.

O estudo concluiu que o modelo one-off – que incide o tributo uma única vez -, é economicamente eficiente, visto que, por se basear na riqueza determinada em um período passado, não distorce o comportamento dos contribuintes. O mesmo não ocorre com o imposto sobre rendas do trabalho, por exemplo, que reduzem o incentivo ao emprego. Sobre a questão de possível evasão do contribuinte, sobretudo a emigração para evitar ser tributado, o estudo sugere estender a avaliação acerca da residência do contribuinte para sete anos antes do ano fiscal em que foi instituído o tributo.

O modelo proposto para o Reino Unido tem como justificativa não apenas a necessidade de contenção das consequências acarretadas pela crise da pandemia, mas também o fato de haver um aumento na riqueza e na concentração desta riqueza no país nesse período e por causa dela. Em que pese a desigualdade social, o texto combate o argumento de que seria mais fácil e prático apenas manejar os tributos já existentes, sejam os que incidem com o retorno da renda ou com a transferência da renda.

Além do Reino Unido, países da América Latina tornaram concreta a proposta de um novo tributo para os contribuintes com maior capacidade contributiva. A Argentina aprovou em novembro de 2020 o “Aporte Solidario y Extraordinario para Ayudar a Morigerar los Efectos de la Pandemia”, e a Bolívia promulgou em dezembro do ano passado a lei que institui um imposto anual sobre riquezas acima de 30 milhões de bolivianos.

O tributo argentino incidirá com alíquotas progressivas uma única vez sobre patrimônios acima de 200 milhões de pesos argentinos – aproximadamente R$ 12,2 milhões – e terá sua arrecadação destinada a diversos setores (como saúde, educação e micro e pequenas empresas), como forma de atenuar os efeitos da pandemia nestas áreas. No caso boliviano, o imposto tem como principal objetivo a redistribuição de riqueza no país, concentrada nas mãos dos 152 contribuintes mais ricos do país.

No cenário nacional brasileiro, temos a seguinte situação: 5,1 milhões de pessoas viviam na extrema pobreza antes da pandemia. De acordo com as Nações Unidas, estimou-se que o ano de 2021 começaria com 7,9 milhões de pessoas nesta condição. Contraditoriamente, a fortuna dos bilionários brasileiros cresceu em US$ 34 bilhões entre março e junho de 2020.

Mostra-se, portanto, razoável que os contribuintes com maior capacidade contributiva – e que, em sua maioria, tiveram aumento patrimonial, enquanto a grande massa da população sofre com os efeitos perversos da crise sanitária e econômica – contribuam com o país neste momento de forte recessão. É necessário que seja aprovado um Projeto de Lei Complementar que institua nova contribuição, incidente uma única vez, sobre a riqueza, tendo como objetivo primordial arrecadar recursos para a Saúde nesse cenário de terra arrasada.

O tributo alcançaria aproximadamente 200 mil contribuintes pessoas físicas, com renda mensal total a partir de 80 salários-mínimos e que detêm 30% dos bens e direitos declarados no imposto sobre a renda. Este número representa apenas 0,1% da população brasileira. As alíquotas progressivas e o limite de isenção de R$ 4,67 milhões são propostos com fundamento em extenso estudo publicado pela Unafisco Nacional. Com base neste estudo, projeta-se uma arrecadação da contribuição de R$ 53,4 bilhões; se consideramos a sonegação fiscal, na ordem 27%, este valor ficaria em torno de R$ 38,9 bilhões.

Antecipando a argumentos comumente colocados nas discussões sobre aumento da tributação de renda e patrimônio, é importante destacar que tal imposto sobre a camada mais rica da população não acarreta fuga de capitais. No artigo intitulado “Tax Flight Is a Myth. Higher State Taxes Bring More Revenue, Not More Migration”, os autores demonstram não haver qualquer relação entre o aumento de impostos e a migração de pessoas mais ricas para outras localidades, sendo esta ocasionada por outros fatores como melhores oportunidades de emprego e moradia, melhores estruturas de serviços públicos, entre outros.

Outro “mito”, o de que a redução na tributação para os mais ricos acarreta efeitos positivos para toda a economia, foi igualmente derrubado em estudo recente publicado pela London School of Economics and Political Science, que analisou dezoito países da OCDE pelo período de 50 anos (1965-2015). Segundo as conclusões dos autores, a redução na tributação dos mais ricos aumenta a desigualdade de renda de forma substancial e não gera nenhum benefício à economia: não se verificou alterações significativas no PIB per capita e na redução de desemprego.

Joe Biden, os governos da Argentina e Bolívia e a Wealth Tax Commission iluminaram o caminho mais óbvio e sensato a tomar no cenário atual: tributar a riqueza de grandes contribuintes que pouco ou nada fizeram até agora para aplacar o desastre humanitário que assola os mais vulneráveis. Não há mais espaços para tergiversações, atalhos ou para as contínuas e inúteis renúncias fiscais sem contrapartida para o Estado, como apontado pelo estudo Privilegiômetro da Unafisco. Se era por falta de bons exemplos a seguir para combater com eficiência a aguda crise fiscal e sanitária que a pandemia agravou, esse já não é mais o problema

*Mauro Silva é auditor fiscal da Receita Federal e presidente da Unafisco Nacional – Associação Nacional dos Auditores Fiscais da Receita Federal do Brasil