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Publicado em 07/04/2021
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Desigualdade tributária: como até a forma de coletar e usar impostos afeta mais as mulheres

Texto:Naiara Bertão/Valor Investe
Foto: Divulgação

É chegada a temporada – chata, mas obrigatória – de declaração do Imposto de Renda. Em meio à burocracia habitual dos brasileiros que ganham mais de R$ 28.559,70 por ano, uma outra discussão, paralela e até mais importante, está em curso: a desigualdade tributária de gênero.

Na semana de 15 e 26 de março, a Global Alliance Tax Justice (GATJ), coalizão global do movimento por justiça fiscal, promoveu a campanha “Justiça fiscal pelos direitos das mulheres”. O tema de desigualdade tributária vinha me perseguindo nos últimos meses, com algumas amigas advogadas postando algo à respeito, algumas pautas começando a aparecer no meu e-mail, e resolvi finalmente ir atrás para entender.

Acontece que, se não bastasse sermos, nós, mulheres, minoria em tudo que envolve geração de renda e emprego formal, ainda somos penalizadas pelo modelo de tributação do Brasil. Infelizmente, nem é só aqui – a maioria dos países do Hemisfério Sul, emergentes, é assim. Na prática, ganhamos menos, mas pagamos mais impostos. Como?

A base da explicação para a desigualdade tributária de gênero está na priorização da fonte de tributação. Mais da metade (58%) dos impostos coletados no Brasil incidem sobre o consumo – 42% da arrecadação vem da renda.

O que isso tem de ruim e porque é tão prejudicial às mulheres? Conversei com a Grazielle David, coordenadora global de políticas e campanhas da Global Alliance for Tax Justice, que me explicou algo muito óbvio e que eu, pelo menos, não tinha parado nunca para pensar à respeito: os mais pobres não ganham muito, além de se sujeitarem mais a trabalhos informais, mas consomem bastante – compram comida, remédios, roupas e outros itens básicos, onde incide mais imposto.

Além disso, sobre o pouco que ganham, e que é tributável, conseguem abater muito pouco, uma vez que não sobra muito dinheiro para investir e receber lucros e dividendos isentos; e não têm muito dinheiro nem para pagar despesas médicas no particular para deduzir depois – acabam dependendo mesmo do SUS. Até têm os que pagam pensão alimentícia, outro item dedutível do IR, mas em valores menores.

E quem são os mais pobres do Brasil?

Vale ainda acrescentar outro dado: segundo o mesmo estudo, os homens ganham 29,6% a mais que as mulheres. Elas também estão mais sujeitas a trabalhos informais ou de baixa remuneração, o que tem muito a ver com a menor disponibilidade de horas (já que cuidam da família e da casa, trabalho ZERO remunerado).

Segundo dados do IBGE referentes a 2019, dos 51,7 milhões de pobres no Brasil, 52% (26,9 milhões) são mulheres contra 24,9 milhões de homens. Dos 13,7 milhões de brasileiros que viviam em situação de pobreza extrema (renda per capita diária inferior a US$ 1,90), pasmem, cerca de 5,4 milhões eram de mulheres que se autodeclararam pardas ou pretas, o que representa quase 40% do total. Quando acrescentamos as mulheres brancas nesta conta, elas são maioria (52%) dos mais pobres.

Um estudo da organização Oxfam mostra que, se o trabalho não remunerado de mulheres e meninas acima de 15 anos com cuidados e atividades domésticas (que somam 12,5 bilhões de horas por dia) fosse incluído no PIB global, seriam US$ 10,8 trilhões anualmente a mais.

“O modelo de tributação no Brasil, o regressivo, onera em especial os mais pobres, que são mulheres em geral, e negras em especial. As mulheres, além de serem maioria entre os informais, são responsáveis pelos cuidados dos filhos, dos pais, o que as tira do mercado formal. Como consequência, elas também não conseguem contribuir ao INSS e perdem uma série de direitos e garantias, para ajudar a piorar”, explica Grazielle David.

Pode até existir um argumento de que, ganhando menos, as mulheres também estão menos sujeitas a cobrança de impostos pela via da renda, o que é verdade, ainda que a lógica funcione mais se pensarmos em termos absolutos e não relativos.

Porém, elas não escapam de jeito nenhum da cobrança de impostos do lado do consumo. São as principais gestoras do lar, responsáveis pelas compras, que consomem quase todo o seu dinheiro, que já não é muito. Acabam gastando, porém, para consumo da família e não apenas benefício próprio.

Vocês já pegaram uma nota fiscal e viram tudo de imposto que está inserido nos preços? Um exemplo: Fiz uma ‘comprinha’ no supermercado em São Paulo em meados de março no valor de R$ 213, o que já achei bem caro porque não comprei quase nada. Lá no rodapé estava: do valor total, R$ 14,01 são de impostos federais e R$ 26,98 de impostos estaduais. No fim, se não houvesse essa incidência de impostos sobre os itens que eu comprei, eu teria pagado R$ 41 a menos. O imposto cobrado por apenas esta compra representa pouco mais de 19% do valor total.

E pior: as mulheres estão ainda mais expostas aos efeitos da inflação. Segundo o Ipea (Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada), que divulga a inflação dividida por classe de renda, a inflação das famílias mais pobres está em 6,75% no acumulado em 12 meses até fevereiro contra 3,43% da classe de renda mais alta.

A alimentação, que é o principal gasto dessas pessoas mais pobres, ao lado de energia elétrica e transporte público, é um dos itens que mais tem subido de preço e ‘roubado’ poder de compra dessa classe. O Índice Nacional de Preços ao Consumidor Amplo (IPCA) fechou 12 meses até fevereiro em 5,20%, sendo que a inflação de alimentos, em especial, subiu 15% no período.

O imposto come de um lado e a inflação de um outro. Ou seja, como se não bastasse já pagarem uma boa fatia de impostos já embutidos nas compras, os mais pobres (sendo a maioria mulheres) precisam lidar com a aceleração da inflação e a diminuição de seu poder de compra.

Mas as desigualdades de gênero não param por aí.

Mesmo quando observamos a renda, os homens têm mais itens isentos do que nós, como, por exemplo, dividendos e lucros (sim, eles investem mais em produtos que são isentos e são maioria entre os donos de empresas e alto escalão executivo que recebem bônus rechonchudos) e ... pensão alimentícia.

Nos dados de Imposto de Renda com ano base de 2018, último relatório disponível no site da Receita Federal brasileira, os homens somavam R$ 15,65 bilhões de dinheiro dedutível do IR referente ao pagamento de pensão alimentícia, contra apenas R$ 370 milhões das mulheres.

É óbvio que o homem paga mais pensão do que a mulher, todos nós sabemos disso e vemos na prática. Mas são elas que usam esse dinheiro para comprar coisas para os filhos, ou sejam são prejudicadas pelo maior tributo no consumo. E adivinhem quem abate os tributos depois do imposto?

“É preciso mudar a estrutura social, mas evitar também que o Estado não reforce a desigualdade com o sistema tributário. A solução passa por uma mudança de um sistema tributário mais baseado na renda do que em consumo”, afirma Grazielle.

Outros pontos defendidos pela Global Alliance Tax Justice são o reconhecimento do trabalho não remunerado no sistema tributário e fiscal; políticas que tributem as grandes fortunas e heranças, a exemplo do que países como Argentina, Colômbia e Bolívia estão estruturando; o combate sério à elisão e evasão de divisas, que ‘roubam’ dinheiro que poderia ser usado para benefícios sociais dos países; e, por fim, redirecionamento de recursos arrecadados para diminuir a desigualdade de gênero.

“A melhor distribuição de dinheiro para reduzir a desigualdade de gênero e social está baseado no financiamento adequado dos serviços públicos. Poderiam ser feitas, por exemplo mais creches que permitam a mulher com filhos voltar ao mercado de trabalho, com escolas, serviços de saúde pública e centros de cuidados de idosos, cujo cuidado acaba ficando mais com a mulher. O Brasil pensa muito pouco nos idosos, em sua qualidade de vida e estrutura para ajudar a viverem com qualidade”, lembra Grazielle.

Vamos aproveitar as discussões sobre reforma tributária para repensar um modelo mais justo?

 

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